sexta-feira, 26 de março de 2010

Dos sempre... porquês

"Do que fugir. Como se houvesse fuga. Só no sentido musical, talvez, como as fugas de Bach, em que uma voz perseguia a outra, e os caminhos pareciam ganhar autonomia, mas teriam de chegar a um acorde final. Haruki sabia tocar fugas de Bach ao piano, embora fizesse anos que já não chegava perto do instrumento. Será que ainda era capaz? Disseminar melodias que se despistavam e procuravam, como amantes em jogos eróticos? E o que Bach pensaria disso, jogos eróticos - ele, um homem de deus? Era possível fazer essa divisão entre as coisas do corpo e as do espírito, ou ambas estavam (eroticamente) imbricadas, como a linha melódica de uma fuga? Mas o espírito, Haruki pensava, morava nas células nervosas, e o corpo era substância volátil, como álcool - apenas demorava um pouco mais para se volatilizar."

"Recair significa cair de novo. No poço sem fundo da felicidade, no abismo renovável da dor e do não. A vida: atençao ao prazo de validade. A vida: dosagem recomendada, vide bula. Testada dermatologicamente, testada oftamologicamente em sessões de tortura nos animais de laboratório. Tantas capsulas por dia, de acordo com o peso e com a idade. Em caso de superdosagem, recorrer à lavagem estomacal. Aconselhável a consulta ao seu médico antes de usar."

"A dor. Verdade indesejável num mundo de analgésicos. Nunca, a dor. Jamais senti-la quieta e quente no meio do corpo, jamais deixar que estremeça nas mãos ou sue frio na testa, jamais permitir que a dor doa.
Esse é o grande engodo. Minha dor é minha: marca na pele, feito a vermelhidão da queimadura. Existe uma visita na sala de estar. A dor, senhorinha sentada no canto do sofá.
Isso, talvez, era o que mais atrapalhava a relaçao com o mundo: o preconceito generalizado contra a dor. E haja comprimido de todas as cores e formatos, garrafas de alcool e outras drogas lícitas, drogas ilícitas, entorpecentes de tantas naturezas. Haja poltronas diante da televisão nas noites de domingo, enquanto um espetáculo de insanidades desliza pela tela. Haja disfarces. No fundo, todos eles com o mesmo disfarçado objetivo: que a dor não doa. Que a dor se cale, se encolha, se submeta, se amordace, se domestique."

Adriana Lisboa - Rakushisha